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Ainda a Coleção e os seus artistas | Poesia e Revolução com Ana Hatherly

Ana Hatherly, 2003 “A Guerra” Pintura 15 x 21 cm

 

“O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!”

 

Começamos com um excerto do poema “Esta Gente/Essa Gente”, publicado em “Um Calculador de Improbabilidades” (2001), um entre dezenas de livros que Ana Hatherly (1929-2015) publicou, para que seja claro este seu espaço de palavra (e imagem) cívica e interventiva no contexto da arte contemporânea portuguesa. Ana Hatherly legou-nos uma obra com extensões da literatura à pintura, passando pelo cinema e por uma intensa atividade docente, destacando-se a sua atividade, entre as décadas de 1960 e 70, enquanto membro do grupo da Poesia Experimental Portuguesa (PO-EX), lançado em 1964 através da revista Poesia Experimental, fruto da genialidade de António Aragão (1921-2008) e Hérberto Hélder (1930-2015) e com as colaborações de António Barahona da Fonseca (n.1939), António Ramos Rosa (1924-2013), E. M. de Melo e Castro (n.1932) e Salette Tavares (1922-1994), que depois integraram no grupo M. S. Lourenço (1936-2009) e a própria Ana Hatherly. Também na década de 1960, a portuense começa a desenvolver, paralelamente, atividade ligada às artes plásticas. O seu percurso singular, é marcado pela “interioridade da escrita para concluir que esta «nunca foi senão representação: imagem». A artista empreende uma arqueologia da língua que a levará às origens dos signos e à herança da caligrafia oriental arcaica, que copia, disciplinadamente, até a mão se tornar «inteligente». O instrumento já não é a caneta, a mão, mas todo o corpo que se move e se inscreve na indizibilidade da escrita-imagem.”[1] Tal como outros autores da PO-EX, movimento que foi renovando os seus fôlegos e continuadores ao longo das décadas seguintes, Ana Hatherly é, assim, um daqueles exemplos de intelectuais e artistas que apoiaram a ação cívica e de combate às discrepâncias de um país afogado em si próprio, num processo de pensamento vinculado à palavra e à imagem. A arte ser ato político ou usar a paz, mas inquietação criativa, para a luta, tal como é evidência a obra “A Guerra” (técnica mista sobre papel, 15x21cm), apresentada na XII Bienal Internacional de Arte de Cerveira, realizada entre 16 de agosto e 21 de setembro de 2003 e que integra a coleção da Fundação Bienal de Arte de Cerveira. Em Ana Hatherly tudo nos parece sempre palavra ou pelo menos signo e semiótica de formas, cores e composição, que se desvinculam de uma abstração latente para se aproximarem da leveza da respiração da mão no seu exercício meticuloso e desassossegado de pensar.

Ana Hatherly nasceu no Porto, tendo sido educada pela avó materna devido à morte prematura dos pais. O seu primeiro instinto foi  a música, tendo ainda investido em algumas viagens para se especializar em música barroca. Contudo, a sua débil estrutura física e saúde não lhe permitiram tais voos e foi após a frequência de um sanatório que foi aconselhada a iniciar-se na escrita.

A formação e percurso académico de Ana Hatherly são diversificados, tendo sido professora catedrática da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, onde colaborou na fundação do  Instituto de Estudos Portugueses. Formou-se também em Cinema, pela London Film School, em Londres, licenciou-se em Filologia Germânica, pela Universidade de Lisboa e era doutorada em Estudos Hispânicos, pela Universidade da Califórnia, em Berkeley. Há cópias dos seus filmes no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian e no Arquivo da Cinemateca Portuguesa. É elevado o número de obras que deixou publicadas, como é o de exposições individuais e coletivas em que participou. No 10 de Junho de 2009 foi feita Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique e foi agraciada com o Prémio Femina por mérito na Literatura, em 2015.

Artista e intelectual de inquestionável importância, o legado de Ana Hatherly é transdisciplinar e disruptivo e a sua obra, da literatura às artes plásticas, passando pelo cinema, é suportada pela essência do pensamento filosófico e por uma vontade de mudança que pautou o diálogo criativo da sua geração.

[1]     Citado em https://gulbenkian.pt/museu/artist/ana-hatherly/ a 28 de março de 2019

 

« texto de Helena Mendes Pereira